quinta-feira, 30 de abril de 2009

sexta-feira, 24 de abril de 2009

POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE GILLES DELEUZE

*DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-
226.
I. HISTÓRICO
Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu
apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de
confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um
com suas leis: primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"),
depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em quando o
hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a
prisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, ao ver
operários, "pensei estar vendo condenados...". Foucault analisou muito bem o projeto
ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir
no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito
deve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era
da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e
funções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção,
decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e
Napoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as
disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que
se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial:
sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.
Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão,
hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior ", em crise como qualquer
outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de
anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o
hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas,
num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as
pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de
controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome que
Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso
futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultrarápidas de
controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de
um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias,
formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir
no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais
tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por
exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitaisdia,
o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também
passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros
confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.
II. LÓGICA
Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são
variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem
comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos
de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de
geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente
binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma
modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada
instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se vê
claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças
internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo
possível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a
fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de
prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para
cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios,
concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm
tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica
constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que
vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de
resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã
emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada
um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do "salário por mérito" tenta a
própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a
formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o
exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.
Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da
caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a
empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma
mesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava no
cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicas
mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre dois
confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variação
contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, ele
mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. As
sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número
de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram
incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e
individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda
a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado
no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil,
por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros meios). Nas sociedades de
controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas
uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas
por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A
linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou
a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se
"dividuais", divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou "bancos".
É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a
disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - que servia de medida padrão -
, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir
como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira
monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de
controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que
vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. O
homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle
é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já
substituiu os antigos esportes.
É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as
máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de
lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam
máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares
recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da
entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas
de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é
a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução
tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutação
já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de
concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como
meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas
também eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa
familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por
especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas
atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência
à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia
ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e
já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas.
O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um
capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o
mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A
família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que
convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras
cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes.
Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As
conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de
disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por
transformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção
ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a "alma" da
empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia
mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e
forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação
rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa
duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o
homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema
miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais
para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras,
mas também a explosão dos guetos e favelas.
III. PROGRAMA
Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que
dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva,
homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde
cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão
eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado
em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que
detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.
O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria
ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de
confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos,
tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas
devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No
regime das prisões: a busca de penas "substitutivas", ao menos para a pequena
delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em
casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação
contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente
de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da "empresa" em todos os níveis de
escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina "sem médico nem doente", que
resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um
progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou
numérico pela cifra de uma matéria "dividual" a ser controlada. No regime da empresa:
as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela
antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o
que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de
um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito à
inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos
meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de
resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços
dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens
pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formação
permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus
antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma
serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.





A Sociedade de Controle, Acrílica s/ Tela (Autor: Alexandre Mourão)